domingo, 9 de abril de 2017

Suicídios na Medicina

 


O assunto hoje é bem denso!
        Recentemente ocorreram 3 tentativas de suicídio entre alunos da Faculdade de Medicina da USP (e ouvi dizer que ocorreram mais 5 outras tentativas nessa mesma turma, mas não tenho certeza do fato).
        Sou médica formada pela USP há quase 30 anos. Quando eu era caloura, fiquei chocada ao saber do suicídio de um aluno do 5º ano, no entanto, pior do que isso, foi descobrir que existia a piada do “um por turma” e que os alunos brincavam tentando descobrir quem seria o colega da sua própria turma.
        Esse índice também é alto no ITA e em outras universidades de excelência mundo afora.
        O que leva a esse ato de desespero?
        Ouço muitas vezes que a culpa é do próprio aluno:
          - Ah, ele devia estar em depressão!
          - Ele é que era “estranho”!
          - Tinha uma vida cheia de problemas…
        E por aí vai.
        Será?!
        Muitos desses estudantes são alunos brilhantes que estudaram a vida inteira e que provaram suas potencialidades ao passarem pelos vestibulares mais difíceis e nunca demonstraram nenhum perfil patológico, surpreendendo até às pessoas mais próximas, quando tentaram encontrar no suicídio a solução para suas angústias. Muitos estão envolvidos com diversas atividades acadêmicas e esportivas e mantendo alto nível de conhecimento científico. Em geral, são extremamente comprometidos com o paciente, sofrendo com eles a limitação da Medicina no combate à doença.
São jovens sonhadores que acreditam que podem abraçar o mundo e salvar a humanidade. Em pleno vigor da juventude querem participar de todas as festas, esportes e vida social. Por outro lado, preocupam-se com o futuro, em conseguir as melhores oportunidades para se tornarem os melhores médicos. Para isso precisam estudar demais!
        Desde pequenos eram acostumados a serem os melhores de sua turma, mas agora, nessas faculdades de elite, todos seus colegas são “os melhores”, então fica difícil se destacar entre eles. Mas ouvem sempre aquela voz interna de que precisa continuar sendo e fazendo o melhor. Em geral, essa cobrança é interna, mas muitas vezes, a família e o ambiente acadêmico também reforçam essas convicções. Diga-se de passagem, o ambiente em que vivem é verdadeiramente competitivo!
        Os professores que ensinam hoje, já passaram por tudo isso. Nós, médicos mais antigos, temos orgulho de contar as histórias de tanta dificuldade pelas quais passamos e superamos. Frases como “o diamante é uma pedra bruta que precisa passar por um enorme processo de lapidação até se tornar brilhante” torna-se para alguns uma inspiração.
        Lembro-me que falávamos que o médico era a pessoa mais "feliz" do mundo. Ficávamos hiper felizes quando conseguíamos almoçar! Puxa, ir ao banheiro a hora que a bexiga chamava nos dava uma incrível sensação de satisfação! Se pudéssemos dormir 8 horas por noite, com certeza foi porque fizemos algo tremendo para merecer tamanho privilégio! Assim, o médico era a pessoa mais feliz do mundo, porque a rotina era tão absurdamente extenuante, que só ter o direito de fazer qualquer dessas coisas mais triviais da vida já nos enchia de felicidade!
        Só que, às vezes ao apertar demais, o parafuso espana!
        Li alguns depoimentos de alunos que sentem essa pressão. São alunos que reclamam por estarem em seus limites. Dormir 4-5 horas por noite é a regra para alunos de Medicina. Eles não reclamam de que estudam demais, mas de que, apesar de estudar tanto, a prova exige algo que não foi o estudado, vindo então a FRUSTRAÇÃO. Se reclamam com os professores, ouvem que isso é importante para que eles aprendam que precisarão estudar assim a vida inteira. Que não basta ser bom, tem que ser “o melhor”.
        Em particular, os jovens que fazem Medicina lidam muito com o significado de vida e morte e tem hora que esse limite se torna muito tênue. Convivem com o sofrimento e a desesperança da doença. Os pacientes só contam seus problemas. Muitos alunos não conseguem criar uma “capa de autoproteção” para não se envolverem com aqueles que o procuram. E não existe um suporte das próprias faculdades para que os alunos aprendam a conviver com essas angústias. Pressupõe-se que cada um tem que ser forte o suficiente.
        Toda essa carga de stress acumulado, predispõe à doenças. Doente, o rendimento cai, mas o aluno não se dá ao luxo de ficar doente. Então vê sua produtividade caindo e se sente pior ainda.
        Como todos os alunos vivem o mesmo momento, o ambiente entre eles é tenso! O clima de desânimo, frustração e irritação vai gerando muitas discussões e conflitos. O espírito competitivo também pode influenciar, chegando ao ponto do clima entre os alunos ser mais de discórdia do que de identidade.
        Existe um momento que esse jovem não sabe mais o limite entre tudo o que precisa fazer, daquilo que ele é capaz de fazer naquele momento. Então, se desespera achando que nunca será capaz de se tornar um bom médico.
Com seu conhecimento e acesso a algumas drogas, por vezes chegam ao extremo.
        O que fazer?
          - Acredito que em primeiro lugar é preciso OUVIR o que eles têm a dizer, mas ouvir com mente e coração abertos. Jamais os enxergando como “crianças mimadas” que reclamam demais só para terem tempo para esportes e baladas. (Como se fosse crime, em pleno auge da juventude, desejar curtir um pouco a vida. Especialmente esses alunos, que muitas vezes por causa do vestibular, já postergaram tanto qualquer tipo de diversão!)
       - VALORIZAR cada um pelo que ele é. Muitos vivem uma fase de auto-estima abalada ao se compararem com seus colegas. Nesse ambiente competitivo, onde todos seus colegas são os melhores classificados em um dos vestibulares mais difíceis, eles não acreditam mais em suas próprias potencialidades.
Além do que, se conseguir vencer essa fase em que se sente um nada e chegar a alcançar um patamar de sucesso profissional, eventualmente, pode se tornar um médico arrogante. Como falar em humanizar o atendimento, se o médico se sente meio que “sobre-humano” por ter superado tantas dificuldades que qualquer ser humano “normal” não precisa ou não consegue superar?! (Seria essa a postura de alguns médicos mais velhos, ao não compreenderem porque esses mais jovens sofrem tanta angústia?)
          - Entender que atrás desse aluno de Medicina existe um jovem, cheio de energia e potencial, ACEITANDO suas opiniões. Ele tem sonhos (e quantos sonhos maravilhosos!). Ele acredita que pode contribuir de alguma forma para melhorar seu mundo e suas palavras não têm menos valor do que de alguém mais velho, só porque não têm a experiência da vida.
        Ouço muitas vezes que essa é uma "geração mimimi", que foram criados tendo tudo e agora, ao se depararem com uma dificuldade não suportam a pressão.
        PERA Aí! Quem criou essa "geração mimimi" foi a nossa geração! Nós demos aos filhos aquilo que muitos não tivemos. Se eles não estão preparados, foi nossa culpa. Por que os acusamos?
Como é que alguém pode debochar daqueles que estão em sofrimento extremo?
        Essa geração é maravilhosa em seus sonhos de criar um mundo melhor. São eles que se preocupam tanto com a ecologia, com os direitos das mulheres e com a desigualdade social. Talvez possam pensar assim, justamente porque foram criados com muito menos dificuldade. E se não conseguem lidar com determinadas cobranças, talvez seja justamente porque, graças a Deus, não sofreram tanto quando pequenos.
        A responsabilidade é da nossa geração, sim!
        Acredito ser preciso, tal qual o príncipe Willian se ajoelha para falar olho no olho com seu filho, também precisamos descer de nosso pedestal ao falarmos com os jovens.
        Puxa, dói demais em meu coração ao ouvir que um jovem, em ato de desespero tentou por fim à sua própria vida. Em especial esses jovens tão ricos em VIDA, que sonharam em se tornar médicos para lutarem contra a morte e melhorarem a saúde e a vida de seus pacientes.

Ficam aqui registradas minhas lágrimas e pedido de um novo olhar a todos eles.